sábado, 10 de julho de 2010

No avião

Assim como entrar na academia, prometo a mim mesmo todos os meses que vou reduzir o ritmo de trabalho e nunca cumpro. Um dia, em súbita decisão, resolvi: “vou à Europa!”. Sempre quis fazer isso mesmo. E assim que decidi vir para a Suécia. Mas – muito lamentavelmente, devo dizer – meu eu-trabalhador é impressionante: sempre consegue frustrar minhas tentativas de descansar um pouco. Assim, decerto em algum momento de insanidade, perguntei-me: “por que não aproveito para trabalhar lá?”. E foi assim que nasceu o Kibeleza aqui na Universidade.

Mas essa não é a história de hoje – posso até contar mais detalhes depois. É mais uma história da minha vinda para cá, e aconteceu no meu vôo para São Paulo – porque, inexplicavelmente, da maior e mais importante cidade do Brasil e uma das maiores do nordeste, Campina Grande, não sai nenhum vôo direto para a Europa. Estava muito bem sentado numa cadeira do fundo, quando, eis que de repente, não mais que de repente, embora estivesse já na etapa de fechamento das portas, entra uma moça. Dentre os vários assentos disponíveis ao fundo da aeronave, ela escolhe sentar ao meu lado.

O avião decola e me dá uma bela visão do sol de fim de tarde. A moça do meu lado discorda: o sol batia diretamente nos cabelos dourados e nos olhos cor-de-mel, o que, obviamente, a incomodava. Quis ser gentil e fechei a janelinha, ainda que isso me privasse de saborear o último pôr-do-sol que veria no Brasil pelos próximos meses ou anos.

- Obrigada.

- Nada.

- Você é de São Paulo?

- Não, Campina.

- Campinas?

- Campina. Campina Grande.

Fez um “ah...” meio lamentoso, e depois me voltei para minha leitura de bordo. Procedimentos de segurança... Use o assento para flutuação...

- Ei.

Flutuação...

- Oi.

- Está com calor?

- Hã, por quê?

- Posso fechar aqui essa saída de ar?

- Você está com frio?

- Um pouco...

(Eu te aqueço).

- Pode fechar, sim, sem problema.

- Ah, obrigada.

Use o assento para flutuação...

- Quer conversar? Ou estou te atrapalhando?

(Não, você é linda).

- Não, não. Pode falar.

- Ah... Puxa assunto.

- Então... Você é de São Paulo?

- Floripa, mas moro lá faz um tempo. Você mora lá também?

- Não, estou só de passagem.

- Pra onde você vai?

- Estocolmo.

- Onde é isso?

- Suécia.

- O que vai fazer lá, trabalhar?

(Vender kibes).

- Passear.

- Legal...

- Já vai direto pra lá?

- Sim. Essa bolsa aqui tá cheia de atividades para as próximas muitas horas de viagem.

- Tipo o quê?

- Vamos jogar Super Trunfo?

- É... Claro... É... Por que não, né?

E, depois de muitas derrotas – sorte de principiante, sempre –, demo-nos conta de que já voávamos há muito, e nada de pousar. O comandante resolve, então, avisar aos senhores passageiros que, devido a problemas de chuva, não poderíamos pousar em Guarulhos, como previsto, e estávamos dando algumas voltas, esperando a situação normalizar.

- Que tal dominó? – ofereci.

O comandante avisa que rumaremos para Ribeirão Preto para abastecer, visto que não poderíamos continuar sobrevoando Guarulhos, cuja pista estava ainda fechada.

- E o que você faz no Brasil? – quereria ela realmente saber de mim?

(Nada).

- Sou professor de inglês.

- Mesmo? Me ensina?

(Mas nem sei falar!)

- Ah, estou poupando vocabulário pra viagem. Mas posso te ensinar umas coisinhas na volta.

- Quando você volta?

(Não sei...)

- Mês que vem.

- Ah, me dá aula logo, vai!

Enrolei algumas palavras, ela pareceu engolir. Os olhos brilhavam, ela parecia interessada. Depois do pouso em Ribeirão Preto, abastecemos, ainda ficamos algumas boas horas na aeronave. Serviram até lanche.

- Tá demorando, né – ela disse.

- Já perdi meu vôo por essas horas...

- Eu ia ficar por lá mesmo, mas tá tão bom aqui...

- Você gosta de aviões?

- É... Não exatamente.

(Imbecil).

- Estou com sono... Vamos dormir? – disse, depois do constrangedor silêncio.

(Não quer tomar nem um vinhozinho antes, me chamar pra jantar?)

- Dormir... Hã... Como?

- Aqui, na cadeira. Me empresta seu ombro? – e, dizendo isso, encostou-se em mim, com suas belas madeixas que – até elas! – eram tão macias.

Assim ficamos uns instantes. Ficava olhando-a de cima para baixo, dos olhos, semi-cobertos pelos fios dourados, até a boca, semi-aberta. Acho que ela abriu rapidamente os olhos, porque vi um sorriso nascendo no canto da boca. Ela viu que eu a estava observando. Beijei-a na testa. Depois, beijei-a próximo da bochecha. E agora, sim, ela sorria. Encostei suavemente meus lábios nos dela. Senti-os se moverem como querendo esboçar um sincero sorriso.

- Senhores passageiros! – bradou a rouca voz mecanizada pelos aparelhos.

Demos um salto. Estávamos nos aproximando de Guarulhos – a pista em Congonhas ainda estava fechada. Que faria agora? Ela se recompôs. Agarrou minha mão, ficou acariciando, mas estava novamente sentada ocupando apenas o espaço da sua cadeira. Tinha um olhar triste – talvez respondendo à visível frustração que o meu expunha.

- A gente se encontra?

- Vou criar um blog quando chegar lá pra contar minhas histórias. Você me deu seu email, então eu te mando o link depois.

- Certo. Agora, preciso ir, acho que minhas amigas estão me esperando há um tempão...

Beijou-me na bochecha. E então ela deu as costas foi embora. E eu, agora, morando na Suécia, frito kibes. Que beleza.

domingo, 6 de junho de 2010

Saudade de casa

Aproveito o frio que me faz ficar deitado e perder a vontade de me levantar para lembrar da minha casa, da minha rua, família e amigos. Penso em um dia voltar para casa. E isso me faz lembrar da Rua da União, "onde todas as tardes passava a preta das bananas". A preta não existe mais. Nem as bananas. Muito menos a Rua da União, que hoje certamente já virou a "Rua Dr. Fulano de Tal". Muda o vasto mundo, e até os nossos pequenos Raimundos vão sumindo. E, se a tecnologia e as mudanças aproximam territórios e países, afasta os homens e suas lembranças.
A lembrança, aliás, é tal qual um arco-íris: pode aparecer sorrindo no final de dias tristes, mas nunca quando a gente chama - e não importa o quanto andemos, não podemos tocá-las. Assim, contentamo-nos com como elas brincam com nossos sentidos, transportando-nos para fotografias em movimento, que trazem, por vezes, sensações isoladas - temperatura, algum cheiro - e envolvem sentimentos por vezes adormecidos. Abrimos os olhos e aparentemente não mais está lá. Mas nunca realmente deixou de estar.
A realidade, afinal, é como uma tela que pintamos com a íris - o que mais, se não, justificaria a beleza multicolorida de um olhar? A memória seria, então, um papel embaixo da tela que absorve o excedente da tinta - daí, na verdade, a falta de foco. E, tal como um sonho, a memória compartilhada é mesmo a mais nítida. Quatro, seis, oito mãos que (re)compõem a mesma cena. Assim, atrelamos a imagem que fica, além de tudo, a pessoas e ternura, tornando-se imortal. E, aliás, é por elas - é por essas pessoas e o carinho que temos por elas - que retemos essas imagens.
As coisas feias a gente nem pinta, e, se pintasse, não guardaria. Não, não vale a pena. E essas pessoas fazem pulular essas imagens, como numa espécie de milagre da multiplicação: repintamos e pintamos sempre nossas memórias, restaurando as antigas e criando novas, quiçá ainda melhores. E acho que isso é próprio de coisa de todos os dias entre pessoas que se gostam.
Penso que nada do que se passou será perdido. Muito pelo contrário. E não precisamos de um objeto, algo no qual possamos pegar, para que isso não nos escape. O que temos é muito mais forte que isso. E está entre nós, que nos gostamos tanto.

domingo, 30 de maio de 2010

Primeiras estórias?

Primeiro de muitos. De muitos textos. Porque, de brasileiros aqui, sou mais um dos incontáveis. Principalmente se considerar os que vieram aqui e já voltaram. E conheço um bocado dos que ainda estão cá.
Cheguei aqui em Estocolmo não há muito. Montei uma barraquinha na Universidade de Estocolmo, onde vendo kibes, a "Kibeleza". José Gomes, é um prazer. Zé pra os brasileiros que vêm comprar aqui, no melhor e menos autêntico kibe da região. Kibe com tempero nordestino. E volte sempre!
Com as vendas, dá para manter um sustento e fazer amizades. A Universidade é um bom local para vender, mas, sinceramente, poderia me instalar em outros locais da cidade. Minha intenção é que os professores, de tanto passarem aqui - espero que comecem também a comprar -, se apiedem de mim e me convidem a estudar na universidade. Preciso voltar para casa com alguma coisa além de um punhado de coroas suecas - principalmente porque não dá pra comprar muitos reais com elas.
Minha intenção, nesse primeiro relato, é contar uma pequena história de um dos primeiros dias em que me instalei aqui. Vi um pessoal se aprontando para jogar bola, e, a muito custo, consegui me comunicar com eles. Disse que era brasileiro - foi meu passaporte para jogar. Naquele modelo de boa e velha pelada, os dois capitães foram tirar o time. Par ou ímpar, e o que ganhou fez um ar de vitória, apontou-me o dedo e bradou:
- Eu escolho o brasileiro!
Meu peito acelerou.
- Mas... Eu não sei jogar!
- E ainda é modesto!
Como bom brasileiro, não desisti e encarei o desafio. Até porque o argentino entrou também no nosso time, e eu precisava demonstrar serviço. Só que, como bom perna de pau, acertava mais canelas que a bola.
De toda foma, não importa o quanto você seja bom; você é brasileiro, eles esperam que você corra o campo o tempo inteiro, drible toda a zaga e faça quinze bicicletas. Só não pode ser triatleta: corre, corre, faz bicicleta, e, no final, nada.
No fim, nosso time perdeu. Mas, como bom brasileiro que já disse que sou, prefiro pensar que fiz o argentino perder.